A manhã já ia alta e o estômago estava encostado às
costas do homem, que aguardava a mesa e hora do almoço para matar a fome, já quase
calejada pelas horas a que se levantara, às seis da matina.
Antes, uma outra empregada,
a telefonista, atendera umas dezenas de vozes, encaminhadas pela sua discrição até
ao destino, imunes de uma curiosidade auditiva que uma telefonista não deve ter
nunca. Era a ética profissional a determinar que tivesse a ponta dos ouvidos
bem aguçada mas que, nunca por nunca, se metesse onde não era chamada e, muito
menos, catasse os segredos do patrão, apesar de ele bem o merecer.
Ela lá ia pedalando na
empresa desde o Verão do ano transacto, a ver se conseguia ir longe naquele
primeiro emprego, que já então lhe fora tão difícil de encontrar.
Mas, pelo que lhe fora dado
sentir na pele, a viagem não estava a ser nada fácil, a menos que os seus
escrúpulos baixassem a guarda até uma qualquer cama onde o patrão, talvez
acometido de uma espécie de acne juvenil, a queria comer a todo o custo.
Lá fora, o sol já ia alto,
cúmplice das movimentações bélicas em que a força das metralhadores saíra da
noite, disposta a cortar os calos de uma enraizada política de avestruz onde
uma classe medrava a soldo de um império em manifesta decomposição.
Quer ao outro empregado,
quer a ela, o que lhes interessava, de momento, era salvarem o mísero emprego.
Só ele lhes pagava as contas e sabe Deus a quanta esgrima se obrigavam um e outro
para se esquivarem às chatices. Ela da cama e o homem dos gritos do patrão que
tinham em comum.
Por tantas e tantas coisas,
as normas da sobrevivência tinham uma enorme força, apesar de a mulher nunca se
coibir de se mostrar, como uma onça enjaulada, durante as sete horas e meia de
trabalho diário por que se vendera, o nojo pelo pato bravo que lhe pagava o
ordenado.
Agora, dia e ela, aquele
concreto dia, com as suas coisas, alheavam-se mutuamente um do outro, por
diferentes preocupações.
De um lado, eram os telefonemas
de uma empresa, dos clientes e fornecedores, do outro e lá fora, ao longo do dia,
a uma velocidade de cruzeiro, efectuavam-se as grandes negociações tendentes a
mudar um status quo político que, eventualmente,
iria libertar a telefonista e o colega do macaco que lhes tocara como entidade
patronal.
Depois do adeus a Grândola,
vila morena, parecia que se haveriam de suceder outras despedidas, custasse,
embora, algum sangue a algumas pessoas.
Foi quando a voz de uma mulher,
sem grandes hábitos de frequentar aqueles fios, se fez ouvir através deles, despoletando
uma pequena ponta da coscuvilhice que há em cada telefonista.
- Armando, vem depressa para casa! Olha que
houve um golpe de estado!
- E está a deitar muito sangue?
Porto, 25 de Abril de 2004
Boa! Há golpes e... golpes...
ResponderEliminarEnfim, um «golpe de asa» na arte de bem escrever! :)
"Um pouco mais de sol — eu era brasa,
ResponderEliminarUm pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa..."
No caso em apreço, não faltou...
A.M.
Agora é que percebo a razão por haver tantos pensos.
ResponderEliminarÉ que é cá golpe!
-"Olha peeensooos."
-"Compre-me pensos."
Resisti. Ainda não comprei, mas por este andar, acho que vou comprar. É que vejo golpe atrás de golpe! Costumo usar ligaduras, mas os pensos são mais rápidos.
-"Olha pensos. Compre-me pensos"
FigasAbraço
É reciclado, mas, continua actual.
ResponderEliminarAbraço a todos e, no dia 5, lá estarei. Entretanto, vou tratando das coordenadas.
Rafa