quarta-feira, 25 de abril de 2012

Memórias de uma telefonista



              A manhã já ia alta e o estômago estava encostado às costas do homem, que aguardava a mesa e hora do almoço para matar a fome, já quase calejada pelas horas a que se levantara, às seis da matina.
Antes, uma outra empregada, a telefonista, atendera umas dezenas de vozes, encaminhadas pela sua discrição até ao destino, imunes de uma curiosidade auditiva que uma telefonista não deve ter nunca. Era a ética profissional a determinar que tivesse a ponta dos ouvidos bem aguçada mas que, nunca por nunca, se metesse onde não era chamada e, muito menos, catasse os segredos do patrão, apesar de ele bem o merecer.
Ela lá ia pedalando na empresa desde o Verão do ano transacto, a ver se conseguia ir longe naquele primeiro emprego, que já então lhe fora tão difícil de encontrar.
Mas, pelo que lhe fora dado sentir na pele, a viagem não estava a ser nada fácil, a menos que os seus escrúpulos baixassem a guarda até uma qualquer cama onde o patrão, talvez acometido de uma espécie de acne juvenil, a queria comer a todo o custo.
Lá fora, o sol já ia alto, cúmplice das movimentações bélicas em que a força das metralhadores saíra da noite, disposta a cortar os calos de uma enraizada política de avestruz onde uma classe medrava a soldo de um império em manifesta decomposição.
Quer ao outro empregado, quer a ela, o que lhes interessava, de momento, era salvarem o mísero emprego. Só ele lhes pagava as contas e sabe Deus a quanta esgrima se obrigavam um e outro para se esquivarem às chatices. Ela da cama e o homem dos gritos do patrão que tinham em comum.
Por tantas e tantas coisas, as normas da sobrevivência tinham uma enorme força, apesar de a mulher nunca se coibir de se mostrar, como uma onça enjaulada, durante as sete horas e meia de trabalho diário por que se vendera, o nojo pelo pato bravo que lhe pagava o ordenado.
Agora, dia e ela, aquele concreto dia, com as suas coisas, alheavam-se mutuamente um do outro, por diferentes preocupações.
De um lado, eram os telefonemas de uma empresa, dos clientes e fornecedores, do outro e lá fora, ao longo do dia, a uma velocidade de cruzeiro, efectuavam-se as grandes negociações tendentes a mudar um status quo político que, eventualmente, iria libertar a telefonista e o colega do macaco que lhes tocara como entidade patronal.
Depois do adeus a Grândola, vila morena, parecia que se haveriam de suceder outras despedidas, custasse, embora, algum sangue a algumas pessoas.
Foi quando a voz de uma mulher, sem grandes hábitos de frequentar aqueles fios, se fez ouvir através deles, despoletando uma pequena ponta da coscuvilhice que há em cada telefonista.
- Armando, vem depressa para casa! Olha que houve um golpe de estado!
- E está a deitar muito sangue?

Porto, 25 de Abril de 2004

4 comentários:

  1. Boa! Há golpes e... golpes...
    Enfim, um «golpe de asa» na arte de bem escrever! :)

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  2. "Um pouco mais de sol — eu era brasa,
    Um pouco mais de azul — eu era além.
    Para atingir, faltou-me um golpe de asa..."

    No caso em apreço, não faltou...
    A.M.

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  3. Agora é que percebo a razão por haver tantos pensos.
    É que é cá golpe!
    -"Olha peeensooos."
    -"Compre-me pensos."
    Resisti. Ainda não comprei, mas por este andar, acho que vou comprar. É que vejo golpe atrás de golpe! Costumo usar ligaduras, mas os pensos são mais rápidos.
    -"Olha pensos. Compre-me pensos"
    FigasAbraço

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  4. É reciclado, mas, continua actual.

    Abraço a todos e, no dia 5, lá estarei. Entretanto, vou tratando das coordenadas.

    Rafa

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