domingo, 8 de abril de 2012

As pombas



É o que dá, estar fora de casa, longe das minhas coisas e do silêncio onde bebo inspiração para os meus projetos mais ambiciosos. Sinto-me mais limitada, embora esse limite seja benéfico, por vezes. Sobretudo no que não devia fazer e faço, como fumar uns cigarros quando me apetece. Aqui, onde estarei provisoriamente até terça-feira, todos são contra o tabaco e eu, incapaz, por agora, de me impor mais um período de abstinência, tenho que descer três lanços de escadas e ir até a um jardim circundante do prédio para lançar no ar umas das minha fumaradas diárias.
Acabei agora mesmo de fazer isso. E, enquanto estava lá fora, depois de passar por uma mulher que estava a jogar à bola com o filhito, parei à beira de um arbusto podado em redondo, onde quatro moscas varejeiras faziam uma pausa ao sol deste incrível dia de Páscoa. Três delas tinham uma carapaça, ou lá como se chama aquilo, esverdeada e luzidia, enquanto a última era mais acastanhada. Às tantas, eram mãe e filh(a)(o)s  a brincar,  tal e qual como os dois que eu tinha encontrado  anteriormente ao lado do prédio.
Entretanto, olhando em frente, um pouco abaixo dos prédios de quatro ou cinco andares aí existentes, vejo o jardim de infância do bairro  com o seu baloiço e pinturas de crianças  e, ao lado, observo igualmente  um pombal,  que um columbófilo cuidadoso trata diariamente com o desvelo de um pai.
De manhã, quando fui ao hipermercado comprar pão fresco, vi as pombas em bando,  falando umas com as outras na sua específica linguagem de ave sem mais nenhum limite senão o céu. Andavam soltas no ar, circundando-o, e aquela hora devia ser uma das muitas horas de liberdade que o dono lhe concede diariamente. Igualmente, não deviam andar com fome, pois pareciam contentes e felizes no seu voo do meio-dia. Não, não andavam ali à espera de uns grãos de milho ou de uns bocados de pão para comer das mãos de um transeunte qualquer cujo prazer diário consista em alimentar pombas públicas. As aves do vizinho aqui do bairro, embora isto  seja uma zona urbana de excelência, são privadas, não dependem da caridade alheia e o dono, daqui por um bocado, quando o sol começar a cair no horizonte ali para os lados da Foz do Douro, vai pegar no seu apito e chamá-las, até elas, uma a uma, regressarem ao lar para depenicarem qualquer coisa numa ceia sagrada que as deixará saciadas até amanhã.
De resto, os outros pássaros dialogavam entre si no que me parecia uma amena cavaqueira e, quando regressei, com os cigarros e o isqueiro no bolso, já depois de passar pela rapariga que antes vira a jogar à bola com o rapazinho,  estando  agora  ambos  sentados  a fazer não sei o quê, entrei no prédio e encontrei o filho da vizinha, pronto a ir passear uma cadela rafeira, a companhia dele e da mãe desde a morte do pai há seis anos.
Eu devia mesmo cheirar a cigarros, ou, então, o rapaz, da janela, viu-me a cometer o pecado das 18 horas, porque, entretanto, pede-me um. E, eu, em dia de Páscoa, talvez para não parecer forreta, dei-lhe, não um, não dois, mas sim três cigarros, como quem dá amêndoas com a firme convicção de que não estarão envenenadas. Ou, se o estiverem, cada um sabe os riscos que corre e então fica completamente por sua conta, aconteça o que acontecer.
Também não sei se as moscas já deram à sola para o seu esconderijo, agora que uma gaivota, lançando no ar o primeiro pio, indica que a noite se aproxima e que estará na hora de recolher.
E pronto, ainda é um bocadito cedo, o homem do apito ainda não mandou regressar a casa um pombal inteiro e eu, com a abstinência do tabaco cá em casa e para não estar sempre arranjar subterfúgios para responder às perguntas cuja resposta toda a gente conhece, hoje, até á presente hora, acabei por fumar talvez só uns seis cigarros.
Enfim, há limites que são nossos amigos e vamos ver se, nestes três ou quatro dias de redução forçada, a minha garganta fica outra vez capaz de emitir uma voz fina e doce como o pio de uma pomba, das muitas do pombal do vizinho que, daqui a pouco, ele chamará uma a uma, até as contar todas e lhes dizer BOA NOITE, como quem acaba de contar uma história a um bando de crianças livres e, ainda, sem minhocas na cabeça… 

2 comentários:

  1. Um dia,
    a juntar a outras lendas,
    vão contar a magia
    dum milagre,
    sobre a Páscoa e suas prendas,
    que Santa Rafaela,
    num final de tarde,
    transformou cigarros em amêndoas!
    ..........xxxxxxxx..........
    Gostei
    FigasRegards

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    Respostas
    1. Ahahahah

      De Santa
      Eu nada tenho
      Aliás nem sequer simples regaço
      Sorte teve mas foi o vizinho
      Em vez das amêndoas que ele não queria
      Ter ainda Rafaela alguns cigarros no maço...lol

      Abraços e obrigada

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