segunda-feira, 2 de julho de 2012

O EUFRÁSIO DA CREMILDE FOI PRESO (ficção)



Não sei se o nome Paciência era próprio se alcunha, sei que era assim chamado o, há muito falecido, marido da senhora Cremilde, que morreu relativamente novo, ainda hoje na aldeia não se usa o costumeiro “morreu como o cão do Miguel”, mas, “morreu como o Paciência”, quando querem dizer que alguém faleceu de forma estranha e ou violenta.

Na aldeia todos sabiam que a Cremilde “acertava o passo” ao marido, não o diziam “à boca pequena”, frequentemente, e em público, qualquer fedelho perguntava, “ó Cremilde, fá fod..te as trombas ao teu homem hoje?”. Ela não se amofinava, sorria até, demonstrando alguma vaidade.

O pobre desgraçado deve ter nascido fadado para a desgraça, lá em casa era o único que “vergava a mola”, andava à jorna para toda a gente, e quando não havia trabalho fora ocupava-se de uns terrenitos de onde tirava o sustento para ele, para a mulher e dois filhos.

Um belo dia, logo de manhã cedo, vi-o passar junto à casa da minha tia, ia com um braço todo ensanguentado, à tarde voltou da sede do concelho com o mesmo braço engessado, disse-se que o burro lhe ferrara. Nesse mesmo dia o Paciência foi para longe abandonar o burro, mas ao outro dia, à noite, o burro voltou e pôs-se a zurrar em frente à casa para lhe abrirem a porta da loja. Fazendo jus ao nome, o marido da Cremilde acolheu-o novamente, antes não o tivesse feito, passado pouco tempo o asnático voltou a ferrar no dono, só que desta na cabeça, matando-o, logo começou o falatório, todos na aldeia responsabilizavam este ou aquele da casa, menos o burro, pela morte do desgraçado.

Certo é que veio a guarda, uma ambulância, levaram o corpo para autopsiar, fez-se uma coleta, enterrou-se o homem, o burro permaneceu, e a vida continuou.

Da união do falecido com a Cremilde haviam nascido dois rebentos, que se dizia poderem ser filhos de qualquer um da aldeia menos daquele a quem chamavam pai, o Josué, o mais velho que ainda novo, para fugir à tropa, foi a salto trabalhar para as minas de carvão das Astúrias e por lá morreu com a doença do silicone nos pulmões, nunca mais regressando à terra que o viu nascer, nem mesmo depois de morto, e o Eufrásio.

Cremilde era uma mulheraça de finas feições, se não se reparasse na bigodaça, pró alto, anca e peitos volumosos que fazia questão de exibir fizesse frio ou calor.

Era conhecida nas terrinhas todas, ali à volta, onde houvesse feira, ela ia a todas, ia e vinha, outras vezes ia e ficava por lá uns dias quando era apanhada em flagrante naquilo que melhor sabia fazer, roubar carteiras, constava que nunca foi parar a uma prisão porque os guardas a obrigavam a devolver o que tinha roubado conseguindo assim que a perdoassem, depois mantinham-na no posto por uns tempos até que, começando pelo comandante seguindo-se as praças, todos se servissem dela até ficarem satisfeitos, e ela não se importava, pois nos dias de festa lá da terrinha os guardas passavam sempre por casa dela, depois da procissão lá estavam os cavalos brancos amarrados na argola da tasca do Paulino que ficava mesmo defronte.

Nas suas andanças pelas feiras, Cremilde fazia-se sempre acompanhar pelo filho mais novo, adivinhava-se o futuro do pequenote.

Por volta dos 13/14 anos, Eufrásio tornou-se num adolescente extremamente violento, batia em todos, novos, velhos, homens, mulheres e crianças, chegou mesmo a dar um enxerto de porrada ao sacristão, ao coveiro, que era seu tio, tentou enterrá-lo numa cova que estava a abrir para o Megilde que se tinha suicidado com remédio do escaravelho, não tivesse o Arménio (coveiro) gritado a plenos pulmões por socorro e ia “desta para melhor”.

Eufrásio arriou impunemente em toda a gente menos no padre e no regedor, até que um dia abriu a cabeça ao primeiro e o segundo espetou com ele num reformatório onde permaneceu até à idade da tropa, nem foi a casa, assentou praça diretamente.

Iniciou-se então uma nova rotina, com regularidade aparecia na povoação um jipe da tropa, vinham buscar o recruta que saía de fim-de-semana e não regressava ao quartel, por lá ficava uns tempos de castigo até que lá aparecia novamente o carro com a polícia militar.

Feita a recruta o nosso herói foi mobilizado e foi “bater com os costados” na Guiné, devido aos constantes castigos por lá ficou quase cinco anos, quando regressou trazia pelo braço uma senhora da cidade, era uma das madrinhas de guerra que, graças aos aerogramas que eram de borla, conseguiu engatar, e com ela casou passado muito pouco tempo.

Entretanto Cremilde, sua mãe, tinha desaparecido, ninguém se importou, constava que tinha fugido para o Brasil com alguém da terra ao lado que nunca mais ligou à mulher e aos filhos.

Como nunca tinha feito nada na vida e sem qualquer fonte de rendimento, Eufrásio decidiu tornar-se proxeneta da própria esposa, como fazia com sua mãe voltou às feiras, obrigava a mulher a prostituir-se, e se o cliente estivesse endinheirado roubava-o.

A senhora, cujo nome nunca soube, conseguiu, numa ocasião em que o marido estava a emborrachar-se no tasco, ir a casa do Sepião que era quem recebia o correio e tinha telefone público, telefonou para casa de familiares a contar a sua desgraça e nesse mesmo dia chegou um carro de praça que a levou, nunca mais o Eufrásio lhe pôs as vistas em cima.

Sem mulher nem dinheiro resolveu emigrar, passado algum tempo, duma povoação pegada, veio a novidade, alguém que também tinha decidido tentar a sorte no estrangeiro contou que tinha trabalhado com ele no Iraque, andava nas obras, a construir os palácios de Saddam, por lá, ou por outras paragens ficou muito tempo até que voltou, ninguém o reconhecia, magro, velho, mal-ajambrado, e sem uma mão, voltou maneta.

Contou a um primo que o apanharam, lá, no Iraque, a roubar e… Zás, mão direita fora.

Sem a mão que tinha arte, para roubar, decidiu dedicar-se à pedincha, andava de terra em terra a bater de porta em porta, mas levava com ele a fama que tinha granjeado em novo, ninguém lhe dava nada, antes pelo contrário, corriam-no quase sempre à pedrada.

Voltou a desaparecer uns tempos, mas como quem é vivo sempre aparece, alguém da terra o viu a mendigar em Lisboa exibindo o sítio da mão que lhe amputaram no Iraque.

Os anos passaram e o Eufrásio acabou recolhido numa instituição de beneficência, mais um par largo de anos se passou até que, ontem, lá estava uma notícia no jornal, Eufrásio tinha sido detido no albergue onde sobrevivia, tinha molestado sexualmente uma assistente social idosa deixando-a às portas da morte.

O jornal andou de mão em mão, o Eufrásio ia ser patife até morrer,

Com graça alguém disse, “vá lá, anda com sorte, está cá, olha se fosse no Iraque”.   

2 comentários:

  1. Muito bem! Deu-te alguma coisa, bateste com a carola nalgum lado? De perna traçada na otomana o psicólogo acordou-te de uma letargia prolongada? Ou será que te submeteste a algum exorcismo para te tirar o diabo do corpo?
    Raios, tás outro!
    Muito bem! Gostei da história e também do estilo.
    Parabéns!
    A.M.

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  2. Ó Padrinho, então não lhe conhecias esta faceta?

    Vai ao luarafricano e se fizeres a busca pela etiqueta Zé Porto. Vais ter mais surpresas... ah ah ah

    Veijios

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